Batismo de Sangue
Queria entender o que levou os freis dominicanos a participarem da luta, até mesmo armada, contra a Revolução de 1964 no Brasil. Qual seria o embasamento teológico e filosófico para tomada de posição tão radical deste grupo de religiosos? Em busca de respostas para estas dúvidas, fui ler “Batismo de Sangue – Guerrilha e morte de Carlos Marighella”, de Frei Betto, 14ª ed. Rio de Janeiro: Rocco.
Segundo Frei Betto o ano de 1967 marcou a virada no modo de viver dos dominicanos em São Paulo. A Igreja Católica mergulhara na “secularização”. A moda consistia em dependurar a batina, usada apenas em ofícios religiosos, trocar o seminário pela universidade e o convento por pequenas comunidades residindo em apartamentos, e vivendo do próprio trabalho. (pág. 70)
Motivados pela renovação eclesiástica suscitada pelo Concílio; o exemplo na Colômbia do padre-guerrilheiro Camilo Torres; a vitória vietnamita sobre as tropas do EUA e a Encíclica “Populorum Progressio” do Papa Paulo VI reconhecendo a legitimidade da luta armada em seu número 31, a saber, “em caso de tirania evidente e prolongada que ameace gravemente os direitos fundamentais da pessoa e prejudique perigosamente o bem comum do país. Os freis dominicanos literalmente foram à luta contra a Revolução militar no país. (pág. 71).
Sem dúvida alguma a presença dos frades na USP, a atração por Carlos Marighella da ALN (Aliança Libertadora Nacional – movimento guerrilheiro), o romantismo para uma geração despontada politicamente pelas barbas de Fidel e Guevara, o futuro parecia estar ali à mão de todos. Movia-os, também, o idealismo e a convicção ideológica de que o Brasil só poderia libertar-se da ditadura e da exploração capitalista mediante a única forma de luta possível frente à supressão dos espaços democráticos: o recurso às armas. (pág. 72)
Num de seus interrogatórios por seus algozes na prisão, Frei Betto respondeu perguntas que qualquer um gostaria de também tê-lo feito, num cafezinho da esquina. Veja.
1. Você reza pela bíblia de Marx? Reconheço a importância de Marx, mas, rezo pela Bíblia de Jesus. No cap. 25 do evangelho de Mateus, quando perguntam a Jesus quem se salvará, ele não diz que serão os crentes, os padres, os ricos que ajudam a construir igrejas ou os democratas-cristãos, mas, sim, “eu tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber...” Portanto, são as atitudes bem concretas em prol da justiça que nos salvam. (pág. 192/193).
2. Marighella era um homem de Igreja? Marighella não estava na Igreja, mas estava no Reino, nessa esfera de justiça e de igualdade, que é o objeto principal da pregação de Jesus. (pág. 193)
3. Se o seu Reino é de paz e de amor, então você condena a violência, a luta armada? Não quero outra coisa senão a paz. Por isso luto contra a violência da burguesia sobre os trabalhadores, contra as estruturas da sociedade capitalista. (pág. 193)
4. Inclusive com armas, contra a orientação da Igreja? Pelo que conheço da doutrina da Igreja, ela não descarta, em última instância, o direito dos oprimidos se defenderem, com armas, da opressão estrutural que os esmaga. Leia “O regime dos princípes”, de Santo Tomás de Aquino e a Encíclica Populorum Progressio, do Papa Paulo VI. (pág. 193)
5. O que você quer é o comunismo? Quero uma sociedade justa, onde a vida do ser humano socialmente mais insignificante esteja assegurada. O Deus no qual eu creio é o Senhor da Vida. Não me interessa se essa sociedade tem o nome de socialismo, comunismo, utopismo etc. Os rótulos não revelam o conteúdo. (pág. 194)
6. Leu quer Marx considera a religião o ópio do povo? É a burguesia que faz a religião o ópio do povo, pregando um deus apenas senhor dos céus, enquanto ela se apodera da Terra. O Deus da minha fé é aquele que se encarna em Jesus Cristo e assume a libertação dos oprimidos. (pág. 194).
7. Você acredita na virgindade de Nossa Senhora? Acredito, pois não tenho outra fé senão a da Igreja. (pág. 194)
8. Jesus era um simples revolucionário ou Deus feito homem? A fé identifica em Jesus de Nazaré a revelação histórica e pessoal de Deus. Jesus foi um revolucionário por pregar a transformação radical da pessoa – pela conversão e comunhão com o Pai – e da história, por um novo e definitivo tempo de justiça e amor. (pág. 195)
A meu ver Frei Betto se saiu bem tanto na inquirição ideológica quanto na inquirição teológica, feita com sarcasmo e brutal opressão, por seu torturador. Penso que julgar os gestos e as atitudes de quem viveu aquele período complexo de nossa história, sem a contextualização do momento é ser injusto, tanto com aqueles que defendiam a Revolução, quanto com os que contra ela, lutaram, ainda que sob as vestes de religiosos.
As palavras de Jesus sempre foram de amor e de paz, porém, ao longo da história nem sempre estes ensinamentos foram utilizados com estes fins. É só avaliar qualquer uma das vertentes “cristãs” que existem nestes dois mil anos de cristianismo. Terminei a leitura do livro com uma visão muito mais generosa e compreensiva em relação às atitudes perpetradas pelos freis dominicanos em nossa histórica política recente.
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