O suporte da duchinha


Astolfo nunca cultivou o seu lado que diz respeito às tarefas manuais. Desde cedo incutiu em si mesmo a idéia de que a vida deveria ser resolvida a partir da inteligência. Sempre foi muito cerebral. De maneira que para ele os afazeres manuais eram atributos daqueles desprovidos de uma inteligência apurada. Arrogante, não, inocente. Criou este modelinho para sua vida e assim viveu por muitos anos, até que um dia...

O saber em excesso envenena já o dizia Platão. Com isto ele não contava. Uma vida toda aparelhada a partir do saber ruiu nele e da noite para o dia. O desejo é amoral o dizem os psicanalistas. Viu-se assim do nada, envenenado pelo saber. Desfez-se de centenas de livros e foi assim repensar o seu cotidiano. Desviou o olhar dos livros para realidade em si mesma. Tomou gosto pelo simples cotidiano.

Numa dessas estava na varanda da piscina de sua casa, aguardando sua esposa que estava trabalhando, quando foi ao banheiro próximo e viu pela enésima vez que o suporte da duchinha do vaso estava bambo e quase caindo. Olhou, olhou e não tomou qualquer providência. Pensou consigo, − vou chamar alguém para consertar isto. Sentou-se novamente na varanda e foi conectar-se ao twitter e ao facebook. Passados alguns minutos o desejo se manifestou lacerante em Astolfo:  ─  vá lá meu camarada e tente consertar o suporte da duchinha.

Astolfo, o homem formado em Kant, Kelsen, Nietzsche, Freud, Lacan, Chesterton, iria sucumbir a um reles desejo passageiro de fazer algo manual? Claro que iria. Ansioso, porém disposto, levantou-se e foi a uma gaveta onde guardava ferramentas (para os outros) e pegou uma chave de fenda. Entrou novamente no banheiro, fechou a tampa do vaso, sentou-se e ficou contemplando (quiçá teorizando) sobre o suporte da duchinha.

− De fato, ele estava muito bambo, e daí? − Não demorará e a duchinha vai despencar. Decidiu agir, rompeu com o mundo meramente das idéias. Desmontou o suporte, fez um enchimento na bucha da parede e tornou a parafusar, quando viu o suporte da duchinha estava fixo como uma rocha e a duchinha havia ficado linda ali pendurada. Sentiu-se o mais orgulhoso dos homens, saiu do banheiro com um ar de certa arrogância e desfilou por alguns segundos para e para no deck da piscina. Estava com peito todo emplumado. Naquele átimo de tempo Astolfo se sentiu o CARA. Não havia testemunha daquela ousadia manual, mas a sensação de realização era imensa. Por um momento viveu sem a aprovação do outro, que sempre parecia buscar. O intelectual é vaidoso por essência.

com a adrenalina no lugar e refeito da emoção, lembrou-se do psicanalista e escritor Contardo Galligaris que diz em seu texto – O sentido faz falta? − que não tem sentido perguntar pelo sentido da vida, que o sentido ou é encontrado na simples existência cotidiana ou não o é. O sentido estava ali, diante de Astolfo, simples e pronto. Naquele segundo conseguiu entender o que Calligaris havia dito naquele artigo da Folha ─ ele que fugira das coisas do cotidiano durante tantos e tantos anos acabara de sentir um sentido profundo no fato de ter conseguido consertar o suporte da duchinha. A vida é simples nós é que complicamos que o diga Astolfo.

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