Carro e poder

Estava eu a ver as notícias do final de semana, quando me deparei com o atropelamento coletivo perpetrado no bairro Cidade Baixa, Porto Alegre, onde o Sr. Ricardo Neiva, 47 anos, funcionário do Banco Central, enfurecido com um grupo de ciclistas que pertubavam a sua passagem, resolveu literalmente atropelar quase todos de uma vez só. Ele alegou na delegacia, que foi primeiramente agredido pelos ciclistas, e que só agiu em legítima defesa para preservar a sua vida, e de seu filho de 15 anos que também estava no carro, já que os ciclistas começaram a agredir o seu carro e a ele próprio, ameaçando-o de linchamento.

Deixemos de lado neste primeiro momento, a questão da culpa ou não do motorista no episódio, e fiquemos com a relação CARRO versus PODER.

Desconheço um povo com uma relação tão esquisita com o carro, isto mesmo, RELAÇÃO. Tem gente que se pudesse casava com um carro. O brasileiro tem “relação com o carro” igual tem relação com seres humanos, por mais absurdo que isto seja. Carro, para boa parte dos brasileiros, é sinônimo de paixão, de cuidados esmerados e outras estultices a mais.

E não para por aí. Carro também é sinal de status. Olha o carro do fulano, “zero bala”, “é importado” é o “modelo de última geração”, lindo hein... no Brasil a pessoa é o que é o seu carro. Começou melhor financeiramente, a primeira coisa que o sujeito faz é COMPRAR UM CARRÃO! O sujeito é íntegro, trabalhador, corretíssimo, porém, anda de “carro mil”, vixe maria, tá quebrado e ainda houve assim: “ele é bonzinho, mas não sabe se relacionar com o dinheiro, por isso tá de carro mil”. As pessoas – de uma maneira geral - não conseguem conceber que para o outro, o carro não significa nada, ou melhor, nada além do normal, qual seja somente um meio de locomoção, e um objeto de consumo como outro qualquer, hoje eu tenho um amanhã tenho outro, e ponto.

Carro no Brasil é poder! O sujeito lá de Porto Alegre atropelou absurdamente inúmeros ciclistas, porque ele está MONTADO numa MÁQUINA DE MATAR PESSOAS, e como tal pode fazer tudo que quer! Afinal, carro é poder! Noutro falar, aquela relação com o carro que inicialmente não faz mal a ninguém – lavar, limpar, cuidar, “amar” etc – com o tempo vai transformando os motoristas (proprietários de carros) em verdadeiros ASSASSINOS e IRRESPONSÁVEIS ao volante, afinal EU TENHO PODER!

Está na hora de revermos nossa “relação” com o carro, para que assim aperfeiçoemos nossas RELAÇÕES com os SERES HUMANOS.

Em Areal, em meio aquela enchente que tomou conta de toda cidade vi uma cena que me tocou. Um cidadão que perdeu a sua casa – e era dono de um carro – chegou perto de outro que o ajudava nos escombros, que porventura era o único que estava sem lama na ocasião, e pediu que tirasse o seu carro da região afetada, porque ele – proprietário – estava muito sujo e não poderia entrar no carro. Ou seja, a vida dele estava um caos, porém, o carro estava “preservado”. Veja você que nem mesmo em meio à catástrofe o brasileiro perde o apego ao seu carro.

Essa relação do brasileiro com o carro me parece típica de povo ainda em desenvolvimento, povo que diante da escassez de tantos bens, tem dificuldade de entender que o carro é meramente um bem consumível, usável, trocável, e descartável, ainda que isto possa parecer absurdo. 

Lembremos das palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6,24). Este apego desmedido ao carro, não deixa de ser um apego desordenado ao dinheiro e aos bens materiais.