Três gotas de Rivotril


Vinicius de Moraes, o poeta, dizia que o ser humano vive duas doses de uísque abaixo do normal, isto é, para que pudesse compreender a realidade e suas nuances, o ser humano precisaria de duas doses de uísque, a partir do que, tudo ficava às claras. Vinícius viveu ao da letra esta sua sacada antropológica, procurava sempre estar com duas doses de uísque bem tomadas, na cabeça. Foi dentro desta “normalidade” que legou às letras brasileiras escritos e melodias tão inesquecíveis.

Astolfo não era nenhum Vinícius de Moraes, mas achava como aqueloutro, que o ser humano vive com três gotas a menos de Rivotril. Noutro dizer, a incompreensão mundana, as guerras, as discórdias entre os homens, as brigas entres marido e mulher, a desavença entre filhos e filhas, a crise das bolsas, tudo era fruto do fato que o ser humano está em falta de três gotas de Rivotril. Astolfo tinha convicção plena disto.

O cunhado de Astolfo pensava diferente. Achava que bastava duas latinhas de cerveja à noite para o mundo ser totalmente inteligível. Dizia ele a Astolfo: ─ Chego em casa à noitinha, tomo duas latinha de cerveja, e tudo fica maravilhoso, compreendo minha minha esposa, rio das notícias do Jornal Nacional, e faço até dever de casa com minhas filhas, é uma maravilha. E mais, durmo como um anjo – vaticinava seu cunhado. Nada como duas cervejinhas...

Astolfo não. Astolfo era daquele tipo que chegava a um churrasco, e quando perguntavam a ele se queria alguma coisa para beber, ele dizia: ─ não obrigado, eu trouxe meu Rivotril de casa. Sua mulher morria de vergonha, afinal porque Astolfo tinha de falar aquilo para o anfitrião da festa, que acabava por não entender a resposta de Astolfo. A verdade é que Astolfo preferia o Rivotril aos porres dos finais de semana.

Quando ia aos médicos ─ o que não era raro ─ sempre reclamava de sua ansiedade em excesso: ─ Doutor, eu sou muito ansioso, a sensação que tenho é que nasci com falta de três gotas de Rivotril em minha vida, será quealgum estudo científico nesta linha, doutor? ─  indagava Astolfo. O médico ria e mandava Astolfo tomar uma gelada para relaxar.

Os médicos geralmente dissimulavam, e diziam a Astolfo que o medicamento Rivotril gera dependência química, e que ele não devia nem podia tomá-lo indiscriminadamente. Astolfo compreendia, mas não se adaptava às alternativas sociais de seus amigos e dos próprios médicos: porres nos finais de semana e cervejinha todos os dias à noite, ou quiçá uma cavalar dose de uísque.

Certa feita, Astolfo ─ que era um homem afeito a muitas perguntas ─ indagou de sua esposa e conselheira habitual. Por que todos tomam cerveja aos borbotões, uísque, e tantas outras bebidas alcoólicas, e está tudo bem, e eu não posso tomar as minhas três gotas de Rivotril? Sua esposa com o equilíbrio habitual, e o sorriso lindo e peculiar, retrucou carinhosamente: ─ porque faz mal.

Astolfo de imediato lembrou da Carta do Apóstolo Paulo aos Romanos ─ Faço o mal que não quero, e não faço o bem que quero ─ enfim, o ser humano e sua eterna incongruência. 

Comentários

Anônimo disse…
Adorei o texto professor. Na verdade o ser humano vive buscando respostas e refúgios em elementos externos ao invés de olhar para si próprio. Devemos nos adaptar ao que nos rodeia e não tentar fazer mudar o mundo para que possamos nos sentir melhor. A resposta vem de dentro para fora e não ao contrário. Rivotril e qualquer outra fuga alivia sintomas da vida a ser enfrentada apenas no durar do efeito das gotas, e existem vários efeitos colaterais que podem agravar ainda mais o que se pretende fugir. Quando o ser humano entender isso, não será necessário nenhuma gota de nada. Forte abraço. Josiane Braga
Não é só o Astolfo ue precisa de rivotril - acho que metade da humanidade se sentiria melhor se tomasse as gotinhas...

Belo texto. Bom feriado!

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