Falo do que vi



Falo do que vi. Rodrigo e Cátia tomavam uma caipiríssima, vários tira-gostos e muita alegria, voltavam de um congresso de direito e a Churrasqueira é sempre um lugar aprazível. O celular de Cátia toca e uma voz ao telefone comunica ao casal: - dona Dolores foi encontrada caída em casa, e já estava a caminho do hospital.

Era 21/09/2012, tudo havia mudado em segundos, o gosto da caipiríssima ainda estava na boca, mas, o mundo lá fora da Churrasqueira já não era o mesmo. Falo do que vi. O casal retornou imediatamente para sua cidade e já encontrou dona Dolores em uma maca no pronto-atendimento. Após contatos com amigos queridos e exames preliminares, a constatação: - dona Dolores sofrera um gravíssimo AVC isquêmico.

Dona Dolores uma senhora de setenta e poucos anos era a alegria em pessoa, incapaz de um gesto de mágoa ou tristeza, prestativa, passeadeira, dançarina, feliz da vida muito embora tenha perdido a mãe aos 3 anos e ter ficado viúva aos 40, com três filhos para criar, sem emprego e profissão. Nada disso abalou o entusiasmo pela vida de Dona Dolores. Falo do que vi.

No entanto, ali naquela maca, adiante no UTI, depois no quarto e agora em casa, o que se vê são vestígios de dona Dolores. Uma das filhas do casal perguntou a Rodrigo em tom de profunda tristeza: - onde está a minha vó? Com o que Rodrigo respondeu: - está no seu quarto filha, e rezemos a Deus para que um dia ela se lembre de quem ela foi...

Falo do que vi. A doença entrou assim naquela família, como um furacão. Levou consigo a história de dona Dolores... do que gostava? Quais os remédios tomava? Quais as preferências pessoais? Dona Dolores superou o 21/09, porém, a doença, impiedosa, está ali a bloquear a reconstrução. É tudo novo aos setenta e tantos anos...

Vendo a situação da família, lembrei-me de Roberto DaMatta ao falar do Alzheimer que acomete a sua esposa. É que a doença de Dona Dolores me lembra muito um Alzheimer nos seus sintomas. Ouçam o antropólogo: “Essa doença é terrível porque rouba a alma do doente, subtraindo dele o que nos torna, afinal, humanos: a capacidade de expressar de forma elaborada nossas ideias e emoções. A doença de minha mulher, Celeste, foi diagnosticada há sete anos, e hoje ela já não fala, só sorri. Claro que faço projeções sobre esse sorriso. Será que é pra mim? Celeste foi perdendo a capacidade motora e cognitiva aos poucos. No princípio, até pensei: “Não deve ser tão complicado”. Mas com o tempo a doença mostrou seu lado mais perverso. É doloroso demais perceber que da pessoa que conheci há 48 anos, por quem me apaixonei perdidamente e com quem formei uma família, só ficou o corpo, como uma lembrança do que já foi. Ela ainda está aí, mas não dá para traduzir em palavras a falta que me faz”. (VEJA, 28/09/2011, p. 21).

É impossível ler isto e não se lembrar de dona Dolores. Lembrei-me também do santo Padre, Bento XVI, que na introdução da Carta Encíclica “Spes Salvi”, cita são Paulo (Rom 8,24ss): “Pois nossa salvação é objeto de esperança; e ver o que se espera não é esperado. Acaso alguém espera o que se vê? E se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos”.

Comentários

Davi disse…
Emocionante o texo, Beto.

Mantenha aceso o otimismo em seu coração. Você é um homem de fé e sabe que para Deus nada é impossível.

Dona Dolores está de cama hoje, mas não tenho duvidas que voltará a ser quem ela erá. Conheço vários casos de pessoas que passaram por isso, se recuperaram e voltaram a levar uma vida normal. Claro, com algumas limitações, mas, todos nós teremos algumas limitações em algum momento da vida.

Veja o Ricardo Gomes, novo diretor técnico do Vasco. A doença deixa apenas pouquíssimos vestígios nele. Será assim com dona Dolores também, não duvide disso.

Por mais que tenham médicos que digam o contrário, a esperança não pode morrer jamais. A medicina é como o direito em alguns aspectos. Sempre é possível mais de um entendimento.

Semana passada estive com dores na região renal, e fui a três médicos que deram três diagnósticos diferentes e três opções diferentes de tratamento.

A cura é possível, nunca deixe de pensar nisso.

Em tempo: o restante dos familiares de dona Dolores sentem muito a falta dela, rezam todos os dias por ela e aguardam ansiosamente o momento de revê-la.

Com carinho, de seu primo e afilhado.

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